sexta-feira, 18 de setembro de 2015

MENINA SORRISO


Flávio Passos

À minha Day 

Se me perguntares o que há de mais belo no ser humano, responderei que é o sorriso, a representação da felicidade.
Sabemos que todos os seres humanos riem, porém, há sorrisos e sorrisos. Há aqueles que nascem para disfarçar um choro, aqueles forçados, aqueles que movimentam apenas os lábios e também os que desabrocham chegando a mostrar os dentes (esses são os mais belos).
Existem pessoas que são a personificação do sorriso, não apenas no sentido físico, mas também no sentido espiritual. Essas pessoas chegam com o seu sorriso aceso e fazem com que todos ao seu redor sejam contagiados pela sua alegria e simplicidade.
Eu, como já disse, não resisto a um sorriso assim, e foi por conta disso que não resisti aos encantos da menina sorriso. A menina que conseguiu cativar o meu coração em fração de segundos e me faz amá-la cada dia mais pela beleza como enxerga a vida e enfrenta as dificuldades do dia a dia. Para citar Renato Russo: "Uma menina me ensinou/ Quase tudo que eu sei/ Era quase escravidão/ Mas ela me tratava como um rei".
E nada melhor do que ter alguém assim para poder chamar de melhor amiga, de confidente, pois todas as dificuldades enfrentadas e todas as confissões são sempre agraciadas com o seu sorriso doce estampado no rosto, que consegue me confortar e fazer com que eu volte a "rir meu riso", assim como a deusa Baubo fez com que Deméter, a mãe terra, voltasse a sorrir para poder ter energia e encontrar sua filha Perséfone.

sábado, 13 de junho de 2015

SINTONIZADOS


Flávio Passos

Sabe quando você olha para uma pessoa pela primeira vez e sente uma energia positiva brotando que faz com que vocês entrem em sintonia?
... Lá vai eu para o segundo dia de aula no mestrado, tudo ainda muito novo. Eu chego atrasado – não que eu me atrase regularmente, mas nesse dia acabei perdendo a hora –, sala cheia, todos postos em seus lugares, procuro um lugar vazio para eu me sentar e eis que, uma aura colorida e sorridente surge do fundo daquele ambiente – esfrego os meus olhos achando que eu estou tendo uma alucinação – então, uma mão delicada e fina se ergue e aponta para um lugar vazio ao seu lado. Confesso que nesse momento senti meus pés fora do chão e fui flutuando em direção àquela energia. Ao me aproximar, pude ver de perto que aquela brisa exalava dos cabelos ondulados e perfumados de uma princesa, uma princesa linda com um sorriso cândido que purificava aquela atmosfera.
Durante toda a aula, nos olhávamos e ríamos como se fôssemos amigos de infância, como se estivéssemos nos reencontrando após um longo tempo separados, como se nossas almas já se conhecessem e estivessem matando a saudade de um tempo já vivido.
Bom, algum tempo depois a aula acabou e chegou a hora de conversarmos, mas, antes disso, houve o abraço, e como foi intenso e verdadeiro aquele cruzamento dos nossos braços se envolvendo. Eu senti que já conhecia aquele perfume, aquele toque e aquele aperto. Foi um momento de regozijo de ambas as partes.
Depois desse primeiro abraço, não nos separamos mais, e, agora, vivemos sempre um tocando o outro, compartilhando nossas histórias, nossos sentimentos, nossas energias, vivendo intensamente em sintonia.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Sobre o Amor



     Sobre o encontro de duas almas nada há que possa ser dito, feito, explicado. Apenas sentido. E é isso: há os que sentem e os que não. Aos que sentem, devem eles ser afeitos a ouvir e escutar estrelas, tal qual Bilac. Aos que não, devem eles ter seus corações, olhos e ouvidos tão presos a dogmas religiosos, a pensamentos arrogantes e egoístas, a uma discriminação tão insensata que os impede de ver com olhos livres a liberdade de quem não faz por mal, não faz para sair do padrão, simplesmente ama. E amor é amor e pronto. Amor é amor e ponto. Sem traduzir, perguntar, esconder. Amor é ação: verbo e atitude. De graça, cheio de graça, bem-aventurado e bem-vindo, flor que desabrocha em terrenos vários, em solos às vezes precários, mas frutifica! Fruta mordida por Eduardo e Mônica, Eduardo e Eduardo ou Mônica e Mônica. Amor é pássaro solto, sem gaiola que o prenda. Quando deixa de ser, transformou-se em coisa outra ou nunca foi plenamente amor. 
     Os amores arco-íris sofrem como outros quaisquer. Mas amam como quaisquer outros também, ou até mais. Trata-se de cumplicidade, companheirismo, lealdade, honestidade, vontade de viver sem o medo e a repressão, de mostrar a quem quiser ver, porque não há o que mentir, já que, em sendo um em dois, dois em um, a voz que se pronuncia não é a de fora, mas a de dentro. É aquele impulso magnético que diz “vamos brincar de olhar as nuvens e tentar adivinhar com o que se parecem”, pois brincar do que quer que seja com quem se ama, nunca é pura e simplesmente um brincar: é ser quem quer ser, sem máscaras, sem os labirintos internos que mantêm em sua frente a placa “Proibido o acesso de pessoas estranhas a este local”. Olhar o céu para contar estrelas, admirar a lua (ah, a lua dos apaixonados!), ver o rastro que o avião deixa, tudo isso é um presente (um bobo mas significativo presente) que somente quem tem coragem encontra tempo para abri-lo. 
     Amores coloridos são reais. Estão aos montes por aí, talvez saindo à noite, quando o lado obscuro do dia permite o caminhar a dois, de mãos dadas, em ruas desertas, até que alguém lance um olhar de repulsa ou um xingamento qualquer. Para tais olhares, o sorriso mais inocente, porque eles veem, mas jamais compreendem que amor não é relação um-a-um na diferença de sexo; é dois-em-um, não importa idade, raça, religião ou... sexo! É ser e estar (como o verbo To Be, do inglês) em alguém, quando as comportas da alma se abrem e é possível repousar silenciosamente na alma de outra pessoa, tendo-se a impressão de que, em meio ao nada do que foi dito, mesmo assim tudo foi falado, pronunciado, sentido. E dura toda a eternidade, só para começar. Caminhar de mãos dadas é abrir caminhos para o caminho que seria duplo, mas se tornou uno à medida que dois, unidos, possuem a força que tudo enfrenta, seja a floresta mais densa ou a guerra com o mais potente arsenal. Apontem as armas como apontam os dedos e verão que, em meio à crítica e ao desprezo, nasce a flor que embeleza o solo da ignorância que é, tantas vezes, adubado com o discurso de ódio e desconhecimento contra quem só quer amar. Menos armas químicas e mais poemas, por favor. Construa seus tabus e suas tábuas e se crucifique neles, sociedade hipócrita! 
     Amores assim muito interessam a quem interesse tiver. Eles viram casos de novela, romance, música. Estão em raios de sol que atingem a todos, tão democraticamente quanto a chuva. Mas também estão trancafiados em mínimas caixas de segredo, trancados a chave cuja chave se perdeu nos intestinos do tempo. A eles, lancem-se a prece e o incentivo, ao invés da injúria e do lamento, os bodes expiatórios já podem ser outros, afinal e amém. Até parece que não entendem que amor que é amor junta as escovas de dente e de cabelo, mas também os livros, os cds, os travesseiros, os roncos, os passados e os sonhos, porque o amor já juntou os corações. Nas promessas feitas – e quantas promessas feitas! –, fica guardado o desejo de que dias possa haver para que mais e mais promessas se tornem realidade e não se dissipem no ar. Colorir o amor com tinta sangue e suor, viver em função de dias sempre brancos, enluarados, mesmo quando faltar a luz da felicidade mais eletrizante; olhar nos olhos quando os momentos (todos eles) requererem a visão mais profunda, que trespassa e ultrapassa, sem nunca trapacear, trair ou trucidar...
     A água e o fogo, assim como a escuridão e os obstáculos, podem extinguir tudo, mas não põem fim ao que mais importa: o Amor. Eis o resumo da paciência, da dedicação, da simplicidade, do carinho, da união, do vínculo que se cria, se gera, mas não perece. Amor quando é amor não escolhe homem, mulher ou andrógino; gato, cachorro, periquito ou papagaio. Chega devastando tudo e construindo algo em volta. Dos destroços que havia ergue-se um templo cujo centro é pulsante e imortal, reluzente mais que ouro de aliança. Trata-se da relíquia do relicário mais inviolável, que resiste aos barulhos exteriores e aos impulsos interiores, aos bagulhos amontoados e aos instintos mais insanos, e cresce e alcança dimensões que mares nenhuns que tenham já sido navegados são tão atlânticos, tão índicos ou tão pacíficos que possam ser usados como comparação, desenho, bússola ou relógio. Amores coloridos são férteis, são banais, são amor: e reclamam ser apenas o que são: Amor. E querem apenas ser o que são: tesouro maior para humanos humanizados. 
     Corações vazios e incolores se reconhecem. Talvez por estar um à procura do outro a fim de se tornarem dois que batem como um, tal qual sino que retumba por dois. Corações que passam a brilhar com tamanha intensidade que é capaz de cegar a quem o olhe sem o enxergar, sem o compreender. Haja sensibilidade para degustar fruta madura como essa, amor que se colhe ao pé do abismo! Aplausos pelo que sentem no fundo mistério do sentir, ou pelo que já sentiam antes de sentir e que somente se ampliou após dar luz ao sentimento da igualdade. A identidade dos amantes pouco importa (não, não importa), pois não influencia em nada que seja amor. Agora e sempre, o que realmente se tem em vista é não ter em vista o final, o fluxo do tempo, porque amor que é amor tem tamanho que olhos comuns não abarcam, proporção a se perder de vista... e nada do que se diga lhe diminui nem explica. Amor, amor mesmo, não é como o vento ou o tempo: não passa.

     Amor é amor e pronto. Amor é amor e ponto. Ponto e pronto. 


sábado, 13 de dezembro de 2014

O herói das mil faces



          Eu considerei a beleza do caminho das pedras, pois nele também há libertação. Andar por sobre os afiados pedregulhos, ferir os pés na lâmina dos seixos, cansar as pernas e fraquejar diante dos obstáculos fazem parte do trajeto. No entanto, foi aí que percebi que o verdadeiro herói jamais dispensa os perigos, as aventuras, as perdas, os mistérios, o sangrar, mas sobretudo ele insiste em não desistir para renascer: cada passo depois da partida é um passo a mais em direção ao Paraíso, Shangri-la místico, Pasárgada eternamente encantada.
     Eu considerei que a beleza da batalha está na persistência, no usar constantemente as garras, a garra, a força de vontade, a fé. Está no enxugar as lágrimas, atravessar o limiar entre o que era, o que está sendo e o que virá. Está em descobrir dentro de si artifícios e artimanhas dantes nunca manifestados. Está, principalmente, em ultrapassar barreiras, agregar valores, conquistar prêmios, fincar raízes no que era inatingível e impossível, mas sem perder a humildade e o amor: alma de herói é, para toda sede, uma nascente de água doce.
      Considerei, por fim, que as provações só levam à redenção aqueles que se atrevem. O herói, além dos louros do reconhecimento, volta para casa com o elixir, com a experiência a ser compartilhada e com a felicidade maior, por saber que, enfim, foi além do Everest e tudo está a salvo, mas diferente do início da jornada. Em suma, entre o mundo real e o especial de cada história de heroísmo, encontra-se um ser de luz mais que brilhante tal qual sol ou diamante, e com um sublime coração, doando-se completamente a cada etapa de sua missão.
 


sábado, 15 de novembro de 2014

Uma menina chamada Patrícia


 
 
Há certas pessoas no mundo que trazem nos olhos e nos gestos uma magia especial: envolver quem com elas se relacione em um mundo de ternura, no qual só cabem sentimentos doces e aquela pureza peculiar que pertence somente a quem consegue dialogar com as fadas. Em Lisboa, conheci uma pessoa assim. Uma menina chamada Patrícia.

Cheguei à casa de sua mãe, nova e carinhosa amiga que me ensinou lindos recantos de Lisboa e cidades vizinhas, e a vi, pela primeira vez. Ela, com a beleza que os treze anos possui, imediatamente revelou sua simpatia e educação, me cumprimentando sem qualquer resquício de desconfiança, como é comum acontecer quando uma pessoa estranha invade o espaço dos adolescentes. Ao contrário, viva e generosa, abriu, como mãe, as portas de sua casa, fazendo-me sentir parte de uma família que me lembrou a minha, já que ali também vivem uma mãe com suas duas filhas.

A intimidade entre nós surgiu quando ela, espontânea, mostrou-se encantada com minhas unhas, que, na ocasião, longas e feitas, portavam a força do esmalte escuro, que nunca passa despercebido. Quisera ela também ter unhas assim: longas e bem pintadas! E mais: unhas de verdade! Não postiças. Achei engraçado o seu encantamento e, manicure que gosto de ser, logo me ofereci: faço as suas se você quiser. E ali fez-se um pacto entre nós.

Voltei a vê-la em um jantar, também em sua casa. Altíssima, com belos cabelos longos e um olhar cheio de pestanas e luz, ela era um pouco a alma da casa. Trazia também os hábitos adolescentes do computador ao colo, da capacidade de, simultaneamente, conversar com os presentes e com os virtuais, do nome de cantores pop na ponta da língua, dos deveres da escola por perto, sinalizando o cotidiano. Eu me despedi dela, pensando que não voltaria a encontrá-la nessa viagem, e lhe deixei de pronto o convite para vir ao Brasil quando quisesse, abrindo as portas de minha casa a ela também. Contudo, voltaria, sim, a vê-la.

Acontece que sua mãe, em outro gesto generoso, permitiu que eu me hospedasse por uma noite em seu apartamento, antes de embarcar para o Brasil, pois eu voltaria de Paris na véspera do voo e ainda não tinha uma reserva de hotel. Fique em minha casa, disse ela. E não precisa procurar hotel... Ninguém, entretanto, estaria no apartamento, pois minha amiga viajaria, a filha mais velha estava em outra cidade, e Patrícia ficaria na casa do pai.

Em Paris, comprei um presentinho simples para Patrícia: um chaveiro parisiense típico, cheio de penduricalhos que lembram o charme feminino da cidade. Deixaria para ela, como um registro de que havia conquistado minha amizade.

Um e-mail de sua mãe chegou de repente, me dizendo que Patrícia havia pedido para estar comigo naquela noite, porque gostaria de se despedir de mim. Caberia a mim apenas preparar uma pizza para nós duas e deixar-lhe algo para que comesse no dia seguinte antes de ir para a escola. Imediatamente me senti feliz! Seria uma alegria estar com Patrícia e cuidar dela um pouquinho. A manicure, claro, estava convocada!

Eu já estava no apartamento quando ela chegou. Incrível como essas pessoas mágicas conseguem chegar acendendo luzes, sem que nenhuma luz precise estar acesa. Trocamos um abraço e já fomos para a cozinha, espaço doméstico onde começaríamos a conversar sobre uma porção de coisas, que aqui não descrevo pela inutilidade de ratificar o quanto podemos nos sentir bem quando conhecemos uma pessoa bacana.

Assistimos a um filme. Bem, eu assisti ao filme, e ela assistiu ao filme e interagiu com as amigas pelo computador. E adorei a sensação de me lembrar de “momentos família” que vivi muitas vezes com minhas filhas. Comida no colo (nos meus momentos família a “comida” era quase sempre um miojo... Eis a cozinheira que ficou na lembrança de minhas meninas!), filme romântico na tela, sofá confortável, companhia estupenda. Doce forma de me despedir da linda Lisboa!

Fiz-lhe, obviamente, as unhas. Esmalte clarinho, para respeitar o acordo com a mãe. Mas, ciente de seu desejo de outros esmaltes, de outras unhas, me ofereci a colocar uma pequena florzinha vermelha nas unhas dos polegares. Ela, animada, aceitou na hora, parecendo incrédula quanto à oportunidade de ter algo diferente nas mãos. Fiz as florezinhas, e ela ficou deslumbrada: disse-me seria sucesso na escola no dia seguinte! A ternura que senti naquele momento foi grande. Apenas uma florzinha tão pequenina podia lhe fazer abrir aquele sorriso feliz? Como a felicidade pode ser simples... Aliás, o chaveiro foi recebido com igual entusiasmo. Logo tratou de buscar as chaves para inaugurar o presente. Por sinal, precisei retocar uma unha tal foi o empenho dela em colocar logo as chaves no chaveiro. E meu presentinho simples ganhou status de joia.

Preparei-lhe, constrangida, o almoço para o dia seguinte. Claro que tive que lhe revelar que eu, ao contrário de sua mãe, era péssima cozinheira. Mas ela, tal como fizera antes, valorizou com todo o carinho o arroz branco, os ovos cozidos e a cenoura que lhe preparei. Fiz também um doce de maçã. Deixei tudo arrumadinho na cozinha, para que, no dia seguinte, ela pudesse facilmente almoçar e seguir para a escola.

Mostrou-me seu quarto, ofereceu-me seus muitos shampoos quando decidi tomar um banho, ajudou-me a preparar o doce, organizou comigo a cozinha. 100% companheira!

Mas um detalhe tornou a noite ainda mais especial. Ela, enquanto víamos o filme, me pediu para ler a postagem que uma amiga havia posto no facebook e que ela havia adorado. Era um texto muito lindinho sobre o fato de meninas legais não precisarem ser bonitas. Ela parecia encontrar naquele texto um espelho confortador para seus sentimentos. Mesmo sendo um texto cheio de razão: meninas legais não precisam mesmo ser bonitas. Ninguém, na verdade, “precisa” ser bonito por fora se traz a beleza por dentro, pois a beleza de dentro tem o poder de se espalhar por fora tornando bonito o que a sociedade, presunçosa e ditadora, trata de classificar como esteticamente feio ou medianamente bonito. Todavia, sua identificação com o texto me fez perceber que ela própria não se percebia bonita. E eu sorri por dentro, na minha jurássica pele de cinquentona, porque sabia que aquela menina, chamada Patrícia, logo saberia conscientemente quão bela é, por dentro e por fora.

Espero que Patrícia venha trazer suas luzes coloridas ao Brasil, passando uma temporada comigo. Tratarei de providenciar que minhas filhas a conheçam e me ajudem a mostrar a ela as paisagens e as rotinas deste nordeste que amo. Sei que ela, viva, curiosa e gentil como é, interagirá com as brasilidades, as nordestinidades, e compreenderá nossas lindezas e mazelas. Porque meninas legais não precisam de visto. Aonde quer que cheguem terão portas e corações abertos para recebê-las.

Obrigada, Patrícia, por ser a menina legal (e linda!!) que é!

 

Christina Ramalho

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A menina do avião


Voava de Paris a Lisboa, deixando os pensamentos correrem soltos, como as nuvens que se ofereciam à contemplação serena de meu corpo relaxado, mas um tanto cansado das últimas tarefas acadêmicas. Sempre que estou longe de casa surge aquele compromisso explícito com as divagações sobre o sentido da vida, os pertencimentos, as diferenças, as relações humanas. E o avião amplia esse compromisso, pois nossa fragilidade na situação de voar com asas alheias deixa bem claro que só temos o pensar como resquício de nossa humanidade. Assim ia eu, refém que estava da vontade absoluta do pássaro metálico gigante e, ainda nestes tempos tão tecnológicos, impressionante.

A meu lado, sentada e um tanto inquieta, uma menina de uns doze anos, dona de olhos redondos e vivos, esticava o pescoço em busca de alcançar a vista da pequena janelinha da qual eu, aparentemente, era a dona. Via-se claramente que seu desejo era de paisagem, e eu quis muito ceder a ela meu lugar, mas, na terceira poltrona, o pai, sério e concentrado, me deixava tímida. Não conhecia a língua que falavam, o que aumentou minha timidez. Cedi, no entanto, o mais que pude, espaço para que a bela menina saciasse um pouco sua curiosidade de céu, nuvens e pouco mais.

Obviamente, a menina não tinha nome para mim. Fiquei a imaginar qual seria. Olhei-a de soslaio, e percebi detalhes como seus brinquinhos azuis, suas unhas com estrelinhas que brilhavam, seus chinelos, sua bolsa cheia de pequenas flores, a cor de jambo de seus braços. Mas ela, concentrada que estava no exercício de buscar o céu, não reparou na minha curiosidade indiscreta.

De repente, a refeição a bordo. Eu recusei. Estava cansada das comidas de avião. Ela aceitou prontamente, mas, logo percebi, nada pareceu lhe agradar muito. Invertendo a dita ordem das coisas, ela começou pela sobremesa. Pequenos pedaços de pera, que eu já havia conhecido no voo de ida. Duros, sem graça... Não deu outra. Ela ficou no primeiro pedaço e logo tampou o pequeno recipiente. Partiu para algo entre uma panqueca e uma lasanha. Uma só garfada bastou. Não havia nada que pudesse ser interessante para uma mocinha certamente acostumada a outros sabores. Desiludida, ela fechou as embalagens e deixou o olhar perder-se, sem comida, sem janela, sem nada. Eu, como tinha um Toblerone na bolsa, tratei de lhe oferecer um pedaço, mas ela não aceitou. Não gostaria de chocolate? Recusou por excesso de educação? Ou seria a figura do pai que lhe deixava sob controle? Comi um pedacinho e guardei o que restava na bolsa. Ela desinteressou-se de minha guloseima.

Mais uma hora de voo e estaríamos em Paris, mas certamente o tempo lhe deveria parecer eterno, dadas as limitações que a situação lhe impunha. Decidiu dormir. E eu me concentrei novamente em minhas divagações.

De repente, o peso leve em meu ombro. Dormindo, a menina deixara o corpo solto, também como as nuvens, e o balanço do avião fez sua cabeça tombar em minha direção. Primeiro, só um peso leve, depois, o peso absoluto de quem se entregou ao conforto de um travesseiro imprevisto: meu ombro. E ali ficaria ela até os minutos finais do voo, dormindo pesadamente, aninhada em meu ombro e, sem saber, oferecendo-me uma onda doce de ternura, que me fez bem.

Acomodei-me o melhor que pude para que meu ombro lhe fosse confortável. O pai também dormia e não vira a filha aninhar-se em meu ombro. Tudo estava em plena paz e equilíbrio. A cabeça de menina me fez lembrar das meninas (já mulheres) que tenho, e vi Gabi e Isa também adormecendo em meu ombro. Tive vontade de lhe fazer um cafuné, tal como faria em minhas meninas. Aquela jovem e desconhecida criatura era, momentaneamente, uma filha adormecida no conforto da mãe. E eu a amei naquele fragmento de tempo e espaço, porque ela era refúgio para minha saudade e era, igualmente,  materialidade da leveza que só a infância tem, em sua maravilhosa entrega ao desconhecido. Cheguei a torcer para que o tempo que faltava se arrastasse mais lento que os ponteiros, só para continuar a desfrutar mais um pouquinho daquela maternidade tão artificial e real ao mesmo tempo. Olhei novamente pela janela e me senti feliz pela responsabilidade recém assumida de deixar a menina desfrutar de seu sono em paz.

Cerca de quarenta minutos depois, ela acordou aos pouquinhos, e nem se deu conta de haver dormido em meu ombro.  Ou, se se deu conta, não pareceu se importar. Ao contrário, levantou a cabeça preguiçosamente, espreguiçou-se, compôs as roupas, puxando a camiseta cor de rosa que vestia, olhou para o pai e viu que continuava dormindo. Nossos olhares, então, se encontraram. E eu, não querendo ser mãe de filha desconhecida, arrisquei: “Comment t’appelle tu?”. A reposta foi brevíssima: “Leah” (Pelo modo como pronunciou, imagino que se escreva assim). Deu-me um sorriso. Eu retribui. E c’est fini! Chegávamos a Lisboa.

Leah, a menina do avião, agora com nome, deixou em meu ombro, em meu coração e em meu pensamento a certeza de que a vida poderia ser muito, mas muito mais simples, se em cada corpo cansado houvesse uma cabeça ainda não maculada por todas as regras, cerimônias, protocolos e limitações que nos afastam cada vez mais da beleza da infância e da capacidade de ver no outro, seja quem for, um pouco de nós. E se, também, houvesse ombros disponíveis aos encontros inesperados. Sei que se meu vizinho fosse um adulto, eu provavelmente não sentiria ternura nem seria tão acolhedora. E essa certeza me joga, novamente, na realidade. Por que somos assim? Por que, Leah, te pergunto, a infância nos deixa tão distantes de nós mesmos?

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

MASSINHA DE MODELAR



Flávio Passos

Hoje, ao acordar, me veio a lembrança de minha irmã mais velha voltando da escola, eu sempre a esperava na calçada de minha casa ansioso para ver quais seriam as suas tarefas daquele dia. Nesse tempo eu ainda não estudava e tinha uma enorme curiosidade de saber que lugar era esse chamado Escola. Eu sabia que era um lugar muito divertido, pois minha irmã me dizia que lá todo mundo ganhava uma tia, todo mundo tinha uma mochila e vários cadernos para rabiscar. Ah, e o principal: todo mundo tinha massinha de modelar... Passou algum tempo e minha mãe disse-me que eu iria começar a estudar também. Ela comprou mochila, vários cadernos, lápis, borracha e muitas massinhas de modelar. No primeiro dia de aula eu estava muito curioso para saber quem seria minha nova tia, eu tinha outras tias, mas as outras eu já as conhecia desde bebê e essa seria nova. Minha mãe me levou até uma sala toda colorida, com várias mesinhas, cadeiras e brinquedos e, apontando para uma mulher sorridente, disse: Essa é a sua nova tia, você agora vai ficar com ela, seja um menino obediente, mais tarde eu venho te buscar. Minha tia deu-me um beijo e me levou até uma cadeira. Eu sentei e fiquei observando as outras crianças, algumas choravam desesperadamente (acho que elas estavam doentes), outras estavam correndo de pega-pega e algumas sentadas assim como eu. Algum tempo depois, a nossa tia começou a contar historinhas e todo mundo ficou curioso para ouvir, até as crianças que estavam com dor pararam de chorar. No fim da manhã, minha mãe apareceu na porta da sala para me levar para casa. Despedi-me da minha tia e fomos embora. Alguns anos se passaram e algumas coisas mudaram, agora, eu já tinha conhecido outras tias e já sabia ler, escrever e contar, essas tias passaram a ser chamadas de professoras e também passei a ter professores. Essas mudanças eu até que aceitei rápido, só não entendi porque ninguém mais brincava de massa de modelar no recreio. Com o tempo, mudanças outras surgiram, eu tinha vários professores, todos eles ensinavam em tempos denominados de horários e não mais a manhã completa como antes, surgiram outras disciplinas, algumas eu passei a gostar de cara como Redação, Literatura e Filosofia, mas apareceram outras que doía a cabeça só de ouvir o nome como Física e Química, sem falar em Matemática que insistia em me seguir ano após ano. Nesse tempo, com algumas mudanças, achei que as massas de modelar voltariam, mas nada de elas voltarem. Daí chegou o dia em que tive que fazer uma prova e escolher o que iria optar a estudar e trabalhar no futuro, claro que optei por aquilo que sempre gostei: estudar português e trabalhar na escola. Essa foi mais outra fase, outros professores, outros colegas, a escola agora era bem maior e tinha mudado de nome, era outro mundo. Nela, os professores eram diferentes, eles nos ensinavam como ensinar. Aprendemos coisas desde os sons da fala, passando pela construção das palavras, das frases, dos textos, dos discursos, sem contar nas teorias literárias, nas literaturas brasileiras, portuguesas, africanas... Hoje, estou na reta final dessa fase que também não houve massinha de modelar como aquela que minha tia dava na escola para a gente brincar, mas sei que essa massinha sempre esteve presente, durante esses anos, personificada na figura de meus professores, estes, me modelaram, me juntaram com diferentes massinhas e me ensinaram como modelar. E sei que, assim como a massinha de modelar, estarei sempre sendo modelado e me modelando, pois essa é a parte mais divertida da massinha de modelar.


Fonte imagem: http://bebeaporter.com/2010/11/12/receita-de-massinha-de-modelar/

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Livro de esquecimento


Éverton Santos




     Ser esquecido é como estar se afogando, agonizando por socorro, se debatendo em desespero, sem saber nadar, a poucos metros da areia ou da margem. Ninguém entra na água, ninguém pode salvar: o que resta do resto é um corpo entregue ao nada, uma matéria sem existência, um tênue registro do já-foi e do nada-mais-é.
     O ser esquecido dói mais do que a ferida de ver a pessoa que você ama te olhar nos olhos, seriamente, e ouvi-la dizer, em voz de veludo e violino, que não dá mais pra continuar com você. Esse é, pois, o início do pior esquecimento indigesto e intragável: o deixar-de-ser.
     Esquecer é não lembrar ou morrer na memória? É deixar, no não-mais, a história; é ver bailar a poeira como estrelas de pó sobre cada finito “Era uma vez...”. E, se viver é mesmo um livro de esquecimento, esquecer é, sobretudo, carregar um obscuro cemitério na cabeça.
      E o que falar de tudo o que morre e continua vivo nas reminiscências? E o que dizer de tudo o que fica morto na recordação de um e ainda mais vivo na vida de outro? E mais: como pode sobreviver aquilo que, nem querendo, vai deixar de ser agora apenas uma ideia?
     O esforço pra lembrar é a vontade de esquecer. E o esforço pra esquecer aguça o desejo de não mais lembrar. No entanto, a pressa de tirar da mente pode ser tanto uma necessidade quanto uma obrigação: necessidade de paz interior e obrigação de desfazer os nós que prendem os presentes e os futuros às amarras dos passados, em nome do por-vir.
     Entre o tempo e o vento há o passar. Entre eles e a memória, o sempre-lá.
     Quem lembra salva um afogado.

Imortalidade não é não morrer: é não ser esquecido.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Antes que termine o dia



Éverton Santos 


“– Se soubesse que não te resta muito tempo de vida, se só tivesse um dia, o que faria?”
“– É uma resposta fácil e ridícula. Eu passaria com você.”

Meu coração, não sei por que, bate feliz quando te vê: 
“Quando te vi passar fiquei paralisado, tremi até o chão como um terremoto no Japão, um vento, um tufão, uma batedeira sem botão. Foi assim, viu, me vi na sua mão.” 
Sabe quando a gente tem vontade de encontrar a novidade de uma pessoa? 
“Eu quis te conhecer, mas tenho que aceitar, caberá ao nosso amor o eterno ou o não dá. Pode ser cruel a eternidade, eu ando em frente por sentir vontade.” 
O que está acontecendo? Eu estava em paz quando você chegou: 
“Como se o silêncio dissesse tudo, um sentimento bom vem e me leva pra outro mundo. A vontade de te ver já é maior que tudo, não existem distâncias no meu novo mundo. Junto coisas da sétima arte, aconteceu sem que eu imaginasse. Tão natural quanto a luz do dia, mas que preguiça boa, me deixa aqui à toa, hoje ninguém vai estragar meu dia, só vou gastar energia pra beijar sua boca. Fica comigo, então, não me abandona, não.” 
Eu já sei o que os meus olhos vão querer quando eu te encontrar: 
“Olhe nos meus olhos e diga o que você vê quando eles veem que você me vê. Olho nos seus olhos e o que eu posso ver, que eles ficam melhores quando eles me leem.” 
Voe por todo o mar e volte aqui pro meu peito: 
“Se você vier pro que der e vier comigo, eu te prometo o sol se hoje o sol sair ou a chuva se a chuva cair, se você vier até onde a gente chegar, numa praça, na beira do mar, um pedaço de qualquer lugar; nesse dia branco, se branco ele for, esse tanto, esse tão grande amor, se você quiser e vier pro que der e vier comigo.” 
Tornar o amor real é expulsá-lo de você, pra que ele possa ser de alguém: 
“Amar não é ter que ter sempre certeza, é aceitar que ninguém é perfeito pra ninguém, é tentar ser você mesmo e não precisar fingir, é tentar esquecer e não conseguir fugir.” 
Pra que parar pra refletir se meu reflexo é você? 
“Se eu tivesse a força que você pensa que eu tenho, eu gravaria no metal da minha pele o teu desenho. Feitos um pro outro, feitos pra durar, uma luz que não possui sombra.” 
Por onde andei enquanto você me procurava? 
“Você foi como um dilúvio de amor, arrancando do meu peito uma dor, e no lugar daquela cicatriz marcou as cenas lindas que o tempo já notou. Você é minha tempestade do bem, trazendo chuva ao meu deserto, me fazendo alguém.” 

– Haja o que houver? 
– Haja o que houver.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Teu peito: paz do meu ser


Éverton Santos

Sabe aquele peito sobre o qual você se debruça e deixa sua alma se esparramar? Aquele peito de carne e osso onde angústia nenhuma é capaz de criar raízes e frutificar? Aquele peito com cheiro de “eu-te-protegerei-não-importa-o-que-aconteça”, onde bate o mais terno coração que você jamais queria ver parar?
Então...
Tive teu peito ligado ao meu por um momento que parecia ao mesmo tempo eterno e rápido demais. “Eu trocaria a eternidade por esta noite”, pensei enquanto dedilhava silenciosamente a inebriante canção do teu tique-taque cardíaco. Poderia cochilar o sono mais profundo nesta almofada humana, que levitava no compasso de uma respiração tão vivaz que me fazia ainda mais crer que as pessoas não deveriam mesmo petrificar-se: o peito é máquina enérgica; o teu é fonte de carinho perpétuo.
Teu peito, seja na vertical ou na horizontal, tem um quê de magnitude e magnetismo, que pede e recebe meu abraço, que se doa e é dominado pelo toque dos meus braços quando gentilmente se beijam. Teu peito é metáfora do encantamento, da suavidade, do refúgio. É meu laço, nunca meu nó. É meu regaço, meu sossego e meu infinito deslumbramento. Nas sem-razões que há para amar, eu amo. No teu peito, me derramo, em teu abrigo mais que humano encontro a paz.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

UMA CRÔNICA-ODE POR FALTA DE VERSOS COMPETENTES



Christina Ramalho


Volto a publicar uma “crônica-ode” que escrevi em 2008. Ao reencontrar o texto, senti-o ainda vivo em minha emoção...

Ter poetas entre os amigos é algo marcante na vida de qualquer pessoa. Embora poemas alheios a seus autores sejam acessíveis a nós, bastando, para isso, que busquemos tê-los por perto, quando quem está próximo de nós é um poeta (ou uma, registre-se bem), não tem jeito: algo que muitas vezes nem pensaríamos em buscar se apresenta diante de nós, instigando-nos o tempo todo a romper com a monotonia do pensamento 3 X 4. Um amigo poeta é colírio, é susto, é aquele par “anjo/demônio” soprando gracejos em nossos ouvidos. Pensamos: “o mundo é uma merda!” E nosso amigo poeta diz a mesma coisa. Mas não diz a mesma coisa. Diz mais. Diz diferente. Diz de um jeito tão danado de bom, que, de repente, passamos a olhar para o tal “mundo merda” com olhos que não tínhamos. E, como uma contradição, ao olharmos para o mundo através dos olhos que a poesia construiu em nós, ele, o mundo, também de repente parece não ser “tão merda” assim... afinal, não é que nele habita um poeta? Falo isso e me lembro do poema “Fardo (a consciência do zero, 1981)”, do livro Rarefato (1990), de Frederico Barbosa:

tenho que
tentáculos afiados tentando
fincar   a   vista   futura feito
                                oráculo

não sou cego  não sossego

Raio de poeta que nega Homero para ser um. Raio terrível de poeta que brinca de dizer quão aguda é a palavra que percebe além de nós, que guarda lince nos olhos, angústia na consciência do vaticínio que nem vaticínio é, porque não há sequer espaço para a consolidação da imagem que se previu. O mundo acelera o poema, que morre logo depois do ponto final. Isso, poeta, não use o ponto final. Não sossegue. Nunca.
Ter poetas entre os amigos é essa coisa angustiante de se ver invadido/a por esses tentáculos afiados e ter que sobreviver sem as sobras do que éramos antes do poema. Poemas cuspidos em nossa cara, em nosso cotidiano, em nossa mesquinha necessidade de pularmos contentes dentro da bolha que nos protege, sem perceber que ela é de sabão. Amigos poetas, com sua chuva de sentidos, exigem de nós reinaugurações constantes. É um “reinventar-se” que não acaba nunca. É aquela consciência de ser o solitário entre as gentes, de ser o sobrevivente cuja reinauguração jamais é suficiente, como me faz recordar outro amigo poeta, o Luiz Otávio Oliani, no poema “Fatalidade”, do livro Fora de órbita (2007):

a vida pulsa em hiatos
e não sei pedir socorro

camaleão fora do ventre
transmudo a cor à revelia

mas a morte não é daltônica

Outra vez sem ponto final. Outra espetada na consciência tão placidamente sentada na antessala do existir, isenta de poemas, como uma vida (?) confortável deveria ser. E, no entanto, todavia, contudo, porém, vem-nos o amigo poeta, com seu poema dizer não o que precisamos ouvir, mas o que precisamos ter para dizer. E a não daltônica morte visita nossa antessala soando todos os alarmes e dizendo: “Não há sala!! O que você está fazendo aí? Esperando o quê?” Ele não pede socorro, mas nos socorre. Sina maldita.
Ter poetas entre os amigos é, assim, estar sempre cutucando aquela feridinha antiga, numa espécie de ritual sadomasoquista, em que somos algozes e vítimas. Algozes, porque amamos nossos amigos poetas mais do amamos a nós mesmos, logo, com eles aderimos à desconstrução do mundo e viramos guerreiros absurdos com baionetas que atiram fonemas e ferem alguns poucos ouvidos atentos. Vítimas, porque, embebedados por suas palavras, saímos mesmo por aí, atirando em tudo, principalmente em nós. E, no entanto, todavia, contudo, porém, e todas as adversativas que os amigos poetas nos trazem, ressuscitamos a cada novo poema, como conseguiu fazer Lau Siqueira, com seu “Bobo da corte”, do livro Texto sentido (2007), quando chegar aos 44 me pareceu uma convocação iminente ao inventário. Não precisei fazê-lo. Estava ali, no poema, disfarçado em outro número:


o que sinto nesses quarenta e seis vértices ungidos
                                que ora espetam ora aguçam os sentidos
é   que  cada  momento  vai  roendo  os  ossos  e  a
dormência   do  impossível  tomando  conta  de tudo
que é a b s o l u t o

o   que   comove   nesses   anos   cumpridos    entre
verdades amargas  e  doces mentiras é  que  apesar
de  tudo   ainda  pude semear  as  sobras  da  minha
inquietude

poemas    derramados  espalhados  no   tabuleiro  do
que     tanta   vez   provoca   o   asco    afirmativo   da
existência

o    que    colhi    entrementes  nem   sempre   foi   da
melhor   safra   mas   ainda   estou   aqui   escrevendo
versos    ligeiramente   aptos   às   consagrações    do
esquecimento

o    vazio   dos    olhares   atônitos   já   não    apavora
o       medo      há       muito     perdeu     o        sentido

ouço   o   ruído das  horas passando ao  largo  de uma
vida   que   se   cumpre para muito além das paisagens
guardadas na retina

e   sorrio   como   se   fossem  oráculos  os  galhos   do
                                cajueiro   que    vejo    pela   porta    entreaberta  sob  o
mantra   estridente   dos  sagüis que  resistem
nos esgares da mata

habito meu silêncio
e ouço atentamente a imensidão e a quietude
de tudo que grita e se move

o que está posto é muito mais do que posso
por isso sigo em frente
derrubando os muros que possam afastar
as matilhas da ternura

as águas que passaram nesse rio jamais ficaram
turvas por isso não me curvo e

vou indo vou

                                                                      rindo de tudo

embriagado com minha própria sede

como um homem que transita pela consciência
dos caminhos jamais percorridos

vou passando

passeando pelo mundo



Raio de amigo poeta que sempre sabe antes de nós, que parece rir das neuroses que, sob suas rédeas, se fizeram metáforas, esvaziando as reverberações super apelativas de nossas emoções indomadas. Ele doma. Molda. Apropria-se. Indo e rindo de si, de tudo, de nós, passeia mesmo. O que, em nós, é inventário, nele é verso malemolente, rio sinuoso de palavra trânsito. Que passa. Mas sem ponto final. Outra vez. E o “mundo merda” é tão mais que isso, só porque ele está ali. O inventário dói. E batemos palmas para a dor, porque nem mais dor sabíamos sentir.
Ter poetas entre os amigos é, enfim, ver-se, como eu, ridiculamente compelida ao texto ode, ao puxa-saquismo deslavado, àquela vontade de dar um abraço bem grandão nesses sujeitos tão descaradamente sábios e néscios, malabaristas 24 horas por dia caminhando nos fios do desejo que a palavra tece e arrebenta bem no meio da caminhada. Cai o poeta e nos leva (amigo...) com ele. Do tombo, surge outro poema. Nele. E outro hematoma. Em nós. Merda de mundo legal este em que “merda” pode ser bom agouro. Sorte. Isso é ter poetas entre os amigos.


Março de 2008

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

DIAS MODERNOS



Flávio Passos
“BRIMMMMM”, 6 horas e o despertador toca. Banho, café, ônibus. Trabalho puxado: três aulas de gramática e duas de literatura. Voz ativa, Machado de Assis, não, isso não é aposto.  Alunos não prestam atenção, o jeito é apelar com frases sobre o timão. 12 horas, retorno para casa, almoço, soneca, depois um saboroso café. Meu tempo é curto e ainda preciso revisar os meus resumos. Resenha, fichamento, artigo, onde será que coloquei meus livros? 18 horas: Faculdade: quebra a cabeça; mas tem diversão, na hora do bandejão. Não sei mais quem é o crítico aqui Afrânio, Bosi, ou talvez Amossy, não sei, agora já me perdi. Quem sabe o ethos seja mostrado no ato de dizer, mas é influenciado por quem vai ouvir. E quem ousa ouvir minhas vozes, veladas, veludosas, vozes? Talvez Cruz e Souza com sua aliteração? Não sei, mas acho que minha cabeça que pensava não consegue pensar mais em nada. E assim volto para casa, cansado por mais um dia tumultuado e turbulento. E, influenciado por Drummond, sob as ondas ritmadas e sob as nuvens e os ventos e sob as pontes e sob o sarcasmo e sob a gosma e o vento, eu resmungo e choro e esperneio e grito por causa deste tempo que insiste em brigar comigo.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

SENTIMENTOS CIBERESPACIAIS


Éverton Santos

Em tempos de ciberespaço, o “kkk”, o “rsrs”, o “hahaha” ou o “shashashahshash” substituem o verdadeiro riso por uma forma artificial de prazer e de descontração. Com a ajuda dos muitos emoticons - desenhos capazes de sintetizar e reproduzir o estado de espírito -, a tarefa fica ainda mais fácil, porque é simplesmente colocar uma cara feliz, sorridente, ainda que isso não reflita, literalmente, o comportamento e o ânimo daquele que o usa.
Do mesmo modo acontece quando a emoção é o choro. Posso dizer que você me fez chorar só pra fazer com que se enterneça e se sinta mal, como se isso fosse capaz de criar uma conexão, através da compaixão forçada. Você, do outro lado da telinha, não terá como comprovar - a menos que tenha uma webcam ligada! - se estou me derramando em prantos soluçantes. Chega-se à conclusão de que as lágrimas não precisam mais ser o líquido salgado produzido pelos olhos. Basta simplesmente representá-las, desenhá-las numa face deprimida e pronto: estou chorando.
E quem quiser que prove o contrário.
No caso da amizade e dos vínculos afetivos, a coisa se torna mais complexa. Cativar alguém, torná-la próxima, isso é algo que deve levar tempo. E eu disse “deve”. Ser cordial é fácil, até mesmo um psicopata ou um sociopata conseguem ser. Esbanjar simpatia e posar de “bom moço” são papéis que não é preciso ser ator para poder representá-los com perfeição. Logo, ter os sentidos atentos nunca é demais. Ser cauteloso ainda continua sendo uma forma eficaz de não ser enganado.
Na verdade, parece que a carência afetiva é a causadora de tudo. Basta ser carinhoso, ter um bom papo, dar atenção e demonstrar interesse: são estes alguns ingredientes para uma “amizade virtual” bem sucedida. Acrescente-se a isso o contato contínuo, a compreensão, o bom humor... Tais atributos são valorizados dentro e fora do ciberespaço, mas parece que, na era digital, sai na frente quem convence pela imagem construída por intermédio da internet.
Uma vez, uma prima me disse que as pessoas das redes sociais dela eram mais legais que as da vida real. Apenas pelo contraste entre o mundo “fictício” e o “real”, já me interessei pelo assunto. São quase que completamente diferentes. Isso porque, nos sites de relacionamento, posso ser quem eu quiser, posso montar perfis à vontade, além de estar ao meu alcance nunca evidenciar os maiores defeitos da minha personalidade. Sem contar que é bem mais legal uma conversa cara a cara, um abraço corpo a corpo, um passeio que não se limita a abrir e a fechar páginas da web. Foram estes os meus argumentos para mostrar à minha prima que eu - que, de fato, existia - tinha o potencial que todos os amigos virtuais juntos não conseguiriam ter: eu tinha - e continuo tendo - uma existência concreta, e não encarcerada em quadrados digitais.
 Sim, a internet revolucionou o mundo; sim, é possível manter contato com pessoas que estão há milhares de quilômetros; sim, há quem tenha encontrado o best friend forever ou o amor da vida utilizando esse meio de comunicação cuja importância, incontestável, pode levar a crer que, se fosse suprimido, a humanidade, talvez, não conseguisse mais progredir. Mas não é sobre isso que estou falando. Não é uma questão de importância, mas sim de ser quem se é.
Estão em pauta os sentimentos: o riso saudável e vivo; o choro que escorre pela face; a amizade como laço indissociável capaz de durar anos infindos; o amor puro, que cresce através do convívio, das descobertas diárias. Isso, como diz a propaganda, não tem preço.
Eis a era do medo e da desconfiança. Eis o tempo em que parece fácil manipular os outros simplesmente fingindo ser aquilo que nunca se pretendeu ser ou fingindo sentir o que nunca sentiu. Como consequência, é tempo de escancarar as portas dos olhos e perceber que muitos são os que podem conhecer o seu nome, mas poucos, o seu sobrenome. Ser solícito e amigável não significa excluir ninguém. Mas deve significar ser seletivo. Deve significar estar atento.

Humildade sempre; ser verdadeiro... também.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

À PROCURA DE UM SORRISO



Christina Ramalho

Folheava distraída o caderno de “Classificados”, quando um anúncio lhe chamou a atenção: “Procuro um sorriso para enfeitar meu rosto”.  Eu, hein, que tipo de anúncio é esse? Cada coisa que aparece... Quem em sã consciência pensaria em publicar algo assim? Procuro um sorriso... Ridículo... Bem, assim ela pensou, mas, ridículo ou não, o tal anúncio não lhe saiu da cabeça. O dia passou, arrastando suas horas sem novidades, e a lembrança do texto ia e vinha, provocando-lhe reflexões.
Procurar um sorriso para enfeitar o rosto. Que significado teria isso? Alguém triste e solitário fazendo um desabafo? Alguém à procura, na verdade, de um amor? E começou a pensar no próprio sorriso. Na verdade, andava sem motivos para sorrir. Lembrou-se do estado terminal da mãe, da falta de paciência do pai, sempre envolvido com o amor quase secreto que se arrastava há anos, da separação do irmão, do desemprego da irmã... Desfiou um rosário de lembranças sem sorrisos. Recordou-se da falta de dinheiro, da recente síndrome do pânico, da situação difícil da empresa onde trabalhava, do choro do bebê recém-nascido que lhe exasperava durante as madrugadas, do excesso de peso que não conseguia vencer... Nossa, pensou, chega disso! Que vida é essa? Será que também andarei carente de sorrisos?
Os problemas sumiram do pensamento. Mas não apagou a imagem da mãe. Tão magrinha, tão frágil, tão querida... Viu-se sentada na cadeirinha de vime enquanto a mãe lhe trançava os cabelos. Filha, você é tão linda! Depois se lembrou das longas conversas sobre namoros, paixões, meninos, rapazes, homens. Amiga e carinhosa. Essas eram as melhores palavras para definir sua mãe. Sorriu, antecipando saudades, umedecendo os olhos, mas sorriu, docemente.
O pai... Apesar de tudo, não conseguia ter raiva dele. A mãe definhando, o pai amando... A mãe morrendo, o pai se culpando... Tentava compreender o sentido de tudo aquilo. O pai nunca fora um bom marido. Essa era a verdade. Assim como era verdadeiro o ar de menino que mantinha no rosto desde a chegada daquela paixão. O mesmo ar de menino que ela registrara em suas memórias de filha mais velha. Ela e o pai na loja de animais, escolhendo um cãozinho. Escolha, filhinha, escolha um. E saíram de lá cheios de pacotes e acompanhados do Tuti, um beagle que lhe daria muito trabalho e muitas alegrias. Sorriu novamente, conseguindo separar o pai do marido da mãe.
O divórcio do irmão foi surpreendente. Dez anos de namoro, um de casamento. Curiosamente terminaram tudo sem alarde, sem brigas... Ao contrário, esbanjavam carinho um pelo outro. A família parecia sofrer mais que os dois. Recordou-se dos apelidos tenebrosos que os dois usavam. Tuquitinha, Tutuquinho, Flofi Flofi, Lelezinho, ... Usavam e continuavam a usar! Sorriu mais uma vez. Curiosos aqueles dois...
O desemprego da irmã era uma situação passageira. A irmã era brilhante. Claro que logo apareceria uma colocação... Talvez se angustiasse mais do que a própria irmã, que, naquele momento, estava envolvida com simpatias para arranjar emprego. Faladeira, a irmã ligava dia sim dia não relatando as experiências inusitadas. Ao final do telefonema, a irmã sempre tinha uma palavra esperançosa, que consolava a mais velha, como se o problema fosse desta. O otimismo da irmã lhe preencheu o coração. Sorriu novamente.
Dificuldades financeiras? Quem não as tem? Conseguiu achar engraçado o dia em que, enlouquecida com as dívidas, fez uns colarezinhos de contas coloridas e saiu oferecendo vizinhança afora. E não é que vendeu tudo? Riu de si mesma. Riu também quando lembrou ter chorado ao mesmo tempo em que o filhinho por puro desespero. Cala a boca, neném. Preciso dormir. Preciso dormir. Ai, Meu Deus, o que eu faço? Ele dormiu. Ela também. E, no dia seguinte, se enterneceu com o cheirinho de bebê recém-acordado que o pescoço do filho exalava. Sorriu, cheia de amor. E o pânico que lhe fez pular no colo do vizinho quando o elevador enguiçou? Até hoje percebia o sorrisinho fraterno que o sr. Amadeu lhe destinava quando se encontravam... Que vergonha! Mas riu... O emprego estava por um fio. Assim que terminasse a licença, voltaria. Porém, o que encontraria? O salário atrasado, o chefe emburrado, insatisfação geral... Mas a última confraternização de Natal tinha sido tão boa, tão divertida. Paulinha, bêbada, finalmente se declarou ao colega do DP. O Bastos, palhaço como sempre, dançou como se fosse uma vedete, jogando charme para o diretor da empresa. Era uma turma engraçada. E sorriu. Do sorriso passou às gargalhadas... Não é que ela ontem agradeceu o grito “Gostosa!” que ouviu ao passar pelo bar da esquina? Ah... Tinha que agradecer... Há tanto se sentia uma mulher desengonçada, sem atrativos... Aquele “gostosa” feio, mal educado, foi “tuuuuudo de bom”... Só eu para fazer uma coisa dessas, pensou sorrindo...
Procuro um sorriso para enfeitar meu rosto. Voltou ao jornal. E escreveu uma carta para remeter à caixa postal do autor do anúncio. Disse a ele (ou a ela), o que eu, agora me voltando para os sorrisos de que necessito, gostaria de dizer a vocês. “Infelizmente, amigo, amiga, (vocês) o sorriso sincero, que enfeita o rosto porque revela a alma, não está sempre em nossas vitrines. Cede lugar aos bicos, aos dentes trincados, ao muxoxo, ao mau-humor. Mas, de um modo ou de outro, a lembrança de momentos especiais, de pessoas especiais, traz o sorriso de volta e enternece a vida.” Ela, a personagem, ainda disse ao destinatário: “Procure o sorriso dentro de você. Eu encontrei o meu”. 

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

A MATÉRIA



Luciana Almeida

Sentada numa cadeira de balanço, lembrei-me das diabruras que cometi quando criança. Lembrei-me, por exemplo, que quando tinha 7 anos, num ato de alegria e inocência, quebrei uma vasilha de cristal datada de aproximadamente dois séculos. Era uma relíquia, pertenceu ao meu bisavô que a adquiriu numa viagem de negócios ao Oriente Médio. Lembro da tia ao caminhar lentamente em direção ao seu quarto, naquela casa antiga e estreita, carregando consigo um vestido passado e pendurado num cabide. Nesse momento, as batidas palpitavam desenfreadamente, pois para chegar ao quarto teria que passar pela sala. Em linha reta caminhava, parecia que não iria notar. Quando, finalmente, estava prestes a concluir o caminho da sala, sentiu que pisou em algo. Era um caco de vidro.
  Eu, virada de costas, fingindo que a TV ocupava a minha atenção ouvi-a dizer: - Mas o que é isso? Continuei a olhar a TV. Ela prosseguia: - O que quebraram aqui? Em seguida, fitou a mesinha onde punha a vasilha e percebeu o espaço vago. Isso soou como um convite para não entregar a infeliz criatura que quebrara o objeto de cristal. As pernas trêmulas, os suores na tez ingênua e dissimulada denunciavam-me. Busquei palavras e não encontrei, nem a sensação que tomava conta de mim poderia aqui descrever. Mas pensei no quão maravilhoso é não sentir culpa, maravilha é ser como uma pluma, leve e aliviada. A situação ficava cada vez mais tensa, os gritos poderiam ressoar a qualquer segundo e serem esticados por horas.
Minha presença era a minha principal rival. Só havia eu por ali. Não tardou o esperado e a Tia Eulália disse num tom grosseiro: - Foi você quem fez isso? Não sei onde vou parar com tantos prejuízos nessa vida minha! Continuei a ficar calada, tentando encontrar alguma maneira de desdizer tudo. Não consegui. Criança não abriga mentiras por muito tempo. Já sem suportar tamanha pressão, entreguei-me: - Fui eu tia, estava brincando e a boneca voou e bateu na sua “vasia”. Desculpa. Nenhuma palavra a fazia esquecer dos destroços espalhados ao chão, o apego por aquele objeto parecia ser maior do que a capacidade de compreender as travessuras involuntárias vindas de uma criança. Eram só 7 anos! A tia não gostava de castigar seus sobrinhos, deixava esse encargo com os pais que, para ela, sabiam aplicar melhor o corretivo necessário, ao invés de uma senhora idosa debilitada em algumas de suas coordenações motoras. Como recompensa por tal favor, minha tia contou para a mamãe, que contou para o papai. Preço pago, castigo consumado.
Nesse instante matutei sobre o que seria mais vago: aquele diminuto espaço que poderia ser substituído por tantos outros enfeites que a tia colecionava ou sua raiva e desespero por alguém que estraçalhou um simples e insignificante objeto. Ignoro os apegos. Desprezo-os. Prefiro os atributos abstratos da vida, os valores de glória. E, hoje, me pego contemplando essa breve reminiscência, voltando o meu olhar para esse passado onde muitos dos sentidos da vida eram banhados pela matéria. Talvez não seja só um passado. Não, não é.